Apesar de todos os
obstáculos à livre iniciativa, o Brasil é hoje palco de um dos mais
impressionantes fenômenos de emergência de empresas em todo o mundo.
Aos 23 anos de
idade, o gaúcho Nei Brasil, formado em ciências aeronáuticas, viu-se diante de
uma das decisões mais importantes de sua vida. O ano era 2005 e Nei, morando em
São José dos Campos, no interior de São Paulo, havia terminado um mestrado no
Instituto Tecnológico de Aeronáutica.
De um lado, ele
tinha uma oportunidade de emprego na Embraer, uma das
maiores fabricantes de aviões do mundo — o “sonho de consumo” de milhares de
jovens brasileiros e caminho natural para quem se forma no prestigiado ITA. De
outro, a vontade antiga de abrir o próprio negócio.
Como fez em outros
momentos críticos, Nei telefonou para o pai, morador de Bagé, a poucos
quilômetros da fronteira com o Uruguai. Treze anos antes, Rodrigo Brasil, então
diretor de uma cooperativa local de carnes às voltas com uma crise terminal,
viu-se obrigado a entrar no mundo dos negócios.
“Se não
empreendesse, não comia”, lembra ele. Empreender no Brasil, a experiência havia
lhe ensinado, era um processo exaustivo e arriscado. Diante da pergunta de Nei,
Rodrigo deu seu veredito: “A Embraer é uma bela empresa, meu filho”.
Nei entendia o pai.
Lembrava que o poder aquisitivo da família caíra bastante nos primeiros anos da
década de 90, quando Rodrigo tentava colocar de pé uma trading de couro. De uma
hora para outra, as férias de verão nas praias de Santa Catarina foram
substituídas por viagens a balneários localizados a poucos quilômetros de Bagé.
Nas outras vezes em
que tinha pedido um conselho ao pai — na escolha do vestibular e, mais tarde,
na opção de fazer o mestrado —, Nei havia seguido a opinião paterna. Naquele
momento, no entanto, decidiu quebrar a regra. “Fui movido pela vontade de fazer
algo completamente novo”, diz Nei.
Hoje, a Flight
Technologies, apesar de novata, já é referência no país em desenvolvimento de
veículos aéreos não tripulados. Os pequenos aviões fazem reconhecimento em
operações militares e, mais recentemente, estão sendo usados para monitorar
florestas plantadas. Em 2012, o empreendimento de Nei deve faturar 6 milhões de
reais.
Pai e filho iniciaram a
vida empreendedora em contextos muito distintos. No ano em que Rodrigo decidiu
fundar sua empresa, em 1992, a inflação ultrapassou 1 100% e os juros reais
oscilaram em torno dos 70%. Quando a Flight Technologies foi criada, a economia
estava estabilizada havia dez anos.
O país começava a
ser visto como uma das economias emergentes mais interessantes do mundo.
Diferenças entre as histórias da família Brasil ajudam a entender um novo
fenômeno em curso no país, algo tão transformador quanto a já mítica ascensão
da classe C — o nascimento de um país de empreendedores.
O sonho do
brasileiro jovem já foi conseguir um emprego público. Hoje, um número cada vez
maior deles quer ter o próprio negócio. E isso muda tudo.
A era da
multiplicação
Entre 2000 e 2010,
o número de empresas no Brasil cresceu 47%, alcançando 6,2 milhões de negócios.
Segundo a mais recente avaliação do Banco Mundial, o Brasil cria 316 000 novos negócios por ano, ficando em terceiro lugar
como o país mais empreendedor, atrás apenas de Estados Unidos e Reino Unido (a
China não entra na conta do banco por falta de dados confiáveis).
A taxa de
sobrevida, que considera as empresas que ultrapassam dois anos de existência,
cresceu de 50% no começo da década para 73% hoje. O Brasil claramente saiu da
era do empreendedorismo de exceção e está inaugurando uma nova fase — a do
empreendedorismo de massa, com um número crescente de empresas atuando dentro
dos limites da legalidade.
“O país está
ficando mais capitalista”, diz Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e
sócio da gestora Gávea Investimentos. Até a virada do século, a maioria dos
novos empresários criava empresas por absoluta falta de opção. Hoje quase 70%
abrem o negócio por enxergar alguma oportunidade.
“Criar empresas
apenas por necessidade nunca foi um bom sinal para um país”, diz Eric S.
Maskin, ganhador do prêmio Nobel de Economia em 2007. “Já a prevalência de
empresas criadas por oportunidade tem um potencial altamente transformador.”
O que explica essa
mudança? Seria ingênuo supor que um país com longa tradição em impor obstáculos
ao desenvolvimento do setor privado houvesse se transformado, da noite para o
dia, em um lugar dos sonhos para o empreendedorismo. Longe disso.
Os avanços
observados no Brasil ocorrem a despeito de um quadro burocrático e fiscal muito
pouco favorável à prática empreendedora. Ocupamos, não custa lembrar, a
vexatória 126ª posição no ranking do Banco Mundial, que classifica o ambiente
de negócios em 183 países. A força empreendedora, graças a uma feliz combinação
de fatores, vem se impondo apesar do governo, não por causa dele.
Mas é inegável que
o novo empreendedor brasileiro catalisa boa parte das transformações
modernizadoras pelas quais o país vem passando. Talvez a mais poderosa delas
seja o aumento da escolaridade — ainda que soframos com a baixa qualidade da
educação, o aumento da quantidade de anos de estudo ajuda a fortalecer o novo
empresário.
A proporção desses
empreendedores com mais de 11 anos de estudo dobrou em oito anos, alcançando
25%. O curso de administração já é aquele que forma mais profissionais no país
— 155 000 graduados por ano, ante 87 000 em direito, o segundo colocado. O avanço na escolaridade se soma a
outra mudança social de fundo, a demográfica.
No caso brasileiro,
a nova leva de empreendedores conta cada vez mais com gente jovem. Segundo um
levantamento do Global Entrepreneurship Monitor, a mais completa pesquisa feita
anualmente sobre empreendedorismo no mundo, o número de empreendedores entre 18
e 24 anos é o que mais tem aumentado no país.
Essa é uma das
consequências do fenômeno conhecido como bônus demográfico. Com dois terços da
população na faixa etária considerada economicamente mais produtiva, nunca
houve tanta gente com idade para abrir um negócio próprio.
“Há uma turma
enorme na faixa dos 20 aos 30 anos propensa a empreender”, diz Gustavo Franco,
ex-presidente do Banco Central e sócio-fundador da gestora Rio Bravo. Uma
juventude mais preparada acaba favorecendo a qualidade das empresas que estão
sendo gestadas.
Cada ano a mais de
estudo, diz um relatório do banco Bradesco, representa um aumento de 13% na
renda. O novo empreendedor não apenas estudou mais, é também mais rico e conta
com maior disponibilidade de recursos de outras fontes. O volume de crédito nas
mãos das pequenas empresas foi multiplicado por 5 desde 2004, o maior salto nas
categorias avaliadas pelo Banco Central.
Avanços no volume e na
natureza das empresas iniciantes são um tipo de fenômeno capaz de mudar a cara
de um país. É nas pequenas empresas, rápidas e rebeldes, que costumam surgir
grandes inovações. São também esses negócios iniciantes que colocam fermento na
necessária competição, conferindo dinamismo aos mercados.
Esse ambiente
borbulhante de novos negócios é, ao mesmo tempo, um desafio e uma oportunidade
para as grandes empresas. Na Fiat, a participação de pequenos fornecedores
praticamente dobrou na última década. “Não estávamos buscando esse aumento. Foi
um movimento natural”, diz Antonio Damião, diretor adjunto de desenvolvimento
de fornecedores da Fiat.
Preocupada em
fortalecer sua cadeia de suprimentos, a Vale
criou em 2008 um programa para aumentar o número de
fornecedores. Desde então, já foram concedidos 650 milhões de reais para
financiar cerca de 400 empresas, principalmente pequenas e médias. “Queremos
aumentar o leque para não depender de poucas companhias”, diz Ricardo Porto,
diretor de suprimentos da mineradora.
Um novo vale do
silício?
Desenvolver um
ecossistema empreendedor é hoje o sonho de muitos governos. Em todo o mundo, a
grande referência é o Vale do Silício, nos Estados Unidos, berço de algumas das
companhias mais inovadoras. Está tudo lá: universidades, dinheiro para
investimento, empreendedores com boas ideias e mercado consumidor forte.
Estima-se que
existam em todo o mundo 79 “Siliconias”, termo que dá nome às tentativas de
copiar o prodígio californiano. Até hoje, nenhuma delas chegou lá. Daniel
Isenberg, professor da renomada escola de negócios americana Babson College, é
um dos maiores estudiosos de ecossistemas de empreendedorismo.
Ao longo de sua
carreira, Isenberg saiu dos Estados Unidos para estudar o ambiente de negócios
de lugares como Israel, Taiwan e Irlanda. Eis um de seus mantras: “Parem de
tentar copiar o Vale do Silício”. A dinâmica de um ecossistema envolve
interações de elementos como cultura, acesso a capital, mercados.
Isoladamente,
muitos deles até podem estimular a atividade empreendedora por algum tempo. Mas
não são suficientes para sustentá-la no longo prazo. O recado de pesquisadores
como Isenberg é claro: cada país ou região deve estimular seu ecossistema de
acordo com as características locais. Em boa medida, é o que vem ocorrendo no
Brasil.
O fortalecimento do emprego,
por exemplo, parece ser uma peça-chave no ambiente empreendedor em formação por
aqui. A taxa de desemprego caiu de 12,4% em 2003 para 4,7% em dezembro. Essa
situação de quase pleno emprego funciona como uma poderosa rede de proteção.
Para os novos empresários,
se tudo der errado, não será difícil arrumar uma vaga mais adiante. Em certa
medida, isso desmente o senso comum — que associa o empreendedorismo a um
apetite desmedido pelo risco. Afora um pequeno grupo realmente destemido, a
massa de empreendedores é formada por gente como cada um de nós.
Formal ou
informalmente, sempre fazemos avaliações de risco e oportunidade antes de nos
lançar numa nova empreitada. “A boa nova é que, na avaliação de milhões de
brasileiros, o risco de empreender diminuiu”, diz Ilan Goldfajn,
economista-chefe do Itaú Unibanco e ex-diretor do Banco Central.
A certeza de que
haveria para onde voltar foi o impulso que faltava para o paulista Carlos
Eduardo Caruso Ferreira, hoje com 39 anos, começar a empreender. Em 2002, ele
trabalhava como consultor da AT Kearney, ganhava um salário equivalente a 32 000 reais, mas decidiu largar tudo para fazer um
mestrado promovido pela Fifa.
Era o passo
primordial para que, dois anos depois, Ferreira abrisse uma consultoria
esportiva com um ex-colega da AT Kearney. “Sabia que, se nada desse certo, não
ficaria muito tempo desempregado, e isso me deu segurança para começar a
caminhada”, diz. Hoje a Golden Goal presta consultoria de marketing esportivo,
administra camarotes de estádios de futebol e fatura 12 milhões de reais.
Um dos efeitos
colaterais do aquecimento do mercado de trabalho é a troca maior de emprego por
parte dos trabalhadores. O índice que mede a rotatividade aumentou mais de 8
pontos percentuais desde 2001 — e isso é positivo, segundo uma pesquisa da
fundação americana Kauffman, referência em estudos sobre empreendedorismo.
Firmas criadas por
pessoas que tiveram contato com várias culturas empresariais têm mais chance de
dar certo. É também uma questão de conhecimento. As empresas privadas dobraram
o investimento em treinamento desde 2000 — e isso beneficia quem quer sair para
empreender.
Uma questão de imagem
O carioca José
Olympio Pereira, copresidente do banco de investimento Credit Suisse no
Brasil, começou a trabalhar em meados dos anos 80. “Naquela época, quando
alguém empreendia e tinha sucesso, as pessoas logo indagavam: qual é a
falcatrua?”, diz. A expansão econômica das últimas décadas deixou esse ranço
preconceituoso para trás.
Estima-se que a
cada dia surjam no Brasil 19 novos milionários. São mais de 137 000 deles espalhados pelo país. Na última lista de
bilionários elaborada pela revista americana Forbes, há 36 brasileiros — um
aumento de 20% em relação ao ano anterior.
“A imagem mudou”,
diz Beto Sicupira, sócio da AB InBev, um dos bilionários da lista e fundador do
braço brasileiro da Endeavor, ONG internacional de promoção do
empreendedorismo. “Os exemplos de sucesso e o testemunho de que dá para chegar
lá ajudaram a tirar o preconceito em torno da atividade.”
Nos últimos anos,
os brasileiros se acostumaram a ler notícias sobre investimentos milionários de
fundos de capital de risco e private equity, que saíram de 261 milhões de
dólares em 2002 para 4,6 bilhões em 2010. Ou sobre as 130 empresas que lançaram
ações na bolsa de valores desde 2004 — das quais 30% tinham menos de dez anos
de existência na época do IPO.
E isso alimenta o
sonho. Não é de estranhar que 86% dos brasileiros digam considerar o empreendedorismo
uma boa opção de carreira. Nesse quesito, na última amostra do Global
Entrepreneurship Monitor, com 54 países, o Brasil só ficou atrás da Colômbia.
De certa forma, esse fenômeno é global.
Em várias partes do
mundo, a ideia de tocar uma empresa nunca foi tão atraente. No Vale do Silício,
há uma frase que resume bem esse espírito: no passado, para impressionar uma
garota, os jovens fingiam fazer parte de uma banda. Hoje, fingem trabalhar em
uma start-up. Não é a toda hora que a história de criação de uma empresa, como
a rede social Facebook, vira um filme de Hollywood.
Embora muitos queiram ser
o novo Mark Zuckerberg, o Brasil tem gerado empresas bem menos charmosas que as
grandes estrelas americanas — e ainda é cedo para saber se um dia teremos por
aqui gente capaz de mudar o mundo. Mas, dentro de nossa realidade, já há espaço
para algumas estrelas.
A elite das novatas
é formada pelas “gazelas” — termo usado pela OCDE, o clube dos países ricos,
para designar empresas jovens com crescimento superior a 20% nos últimos três
anos. Segundo o IBGE, havia no país em 2009, último ano de medição, quase 12 000 “gazelas”.
Isso é o
equivalente a 3,3% do universo de empresas analisadas. Entre os integrantes da
OCDE, a média é inferior a 1%. Fundada em 2003 no Rio de Janeiro, a agência de
marketing Biruta Ideias Mirabolantes é uma delas. Ao lado de três sócios, o
estudante Alan James, na época com 28 anos, conseguiu um lugar na incubadora
conhecida como Shell Iniciativa Jovem.
Seu sonho era criar
a própria empresa de comunicação. Já no segundo ano James conseguiu fazer
pequenas campanhas para companhias como a própria Shell. Em 2007, a
Petrobras virou cliente e, mais recentemente, Claro e Itaú Unibanco entraram no
portfólio.
Com esses nomes na
carteira, a Biruta não parou mais de crescer. Nos últimos três anos, o
faturamento passou de 10 milhões de reais para 18 milhões. Em 2011, James e
seus sócios venderam 20% da empresa, por 5 milhões de reais, para o fundo Fox
Investimentos.
Entre os
economistas, debate-se muito quais serão os efeitos desse novo momento do
capitalismo brasileiro. Por ora, os índices de produtividade e inovação ainda
não acusam as melhorias esperadas. Parte da explicação é o papel negativo do
governo. Nesse sentido, as novas empresas estariam elevando a produtividade de
um lado, e o governo estaria puxando para baixo do outro.
Para os economistas
do Itaú, não restam dúvidas de que a nova onda de empreendedorismo está tendo
importantes efeitos macroeconômicos. “Esse fenômeno é um dos motivos que nos
fazem estimar o potencial de crescimento do Brasil em 4%, e não 3,5%”, diz
Goldfajn.
Qual é o fôlego
dessa nova onda? Apesar da recente euforia, é preciso colocar o momento em
perspectiva. O crescimento mais forte da economia, não há dúvida, cria grandes
oportunidades. Mas também é capaz de ocultar antigos problemas. Vale olhar para
o sistema tributário.
O Simples, regime criado
em 1996 e que hoje vale para empresas com até 3,6 milhões de reais de
faturamento, representou um enorme avanço ao reduzir o peso dos tributos e a
burocracia. Na prática, porém, puniu o crescimento — já que o sistema
tributário kafkiano existente no país passa a pesar sobre quem ultrapassa o
limite.
A boa nova é que o
governo, assustado com a desaceleração dos últimos meses, recentemente
anunciou planos de alterar a lei trabalhista para permitir relações mais
flexíveis de trabalho. Também há expectativas de desoneração da folha de
pagamentos da indústria, entre outras medidas.
Na ausência de
reformas mais ambiciosas, todas essas mudanças, se de fato forem adiante, são
benéficas. Podem colocar mais lenha num movimento que está ganhando força a
cada dia. Num país em que o Estado sempre teve atuação determinante nos rumos
da economia, o avanço do empreendedorismo representa uma chance inédita de
alcançar um equilíbrio melhor entre governo e sociedade.
Para pensadores como o
cientista político americano Francis Fukuyama, é esse equilíbrio o responsável
pelo sucesso de longo prazo de uma nação. Nesse sentido, uma sociedade forte e
dinâmica é requisito essencial. Individualmente, os empreendedores geram
empregos e prosperam na vida. Tomados em conjunto, são a chave para um ambiente
mais moderno — e um país melhor.
Fonte: Exame
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